04/06/2007

Liberdade de Expressão

Por Mayara Evangelista

Boa Noite e Boa Sorte, dirigido e co-escrito por George Clooney propõe uma reflexão sobre as dimensões da liberdade de imprensa e o papel da mídia na sociedade. Para isto, resgatou a história de Edward R. Murrow o conceituado jornalista âncora da CBS, uma das principais emissoras norte-americanas dos anos 50. A abordagem central é acionada quando Murrow bate de frente com o senador McCarthy, presidente da Comissão de Atividades Antiamericanas, período mais conhecido por “caça as bruxas”, uma alusão aos simulacros da Santa Inquisição, no qual o senador ditava regras e punia qualquer atitude que considerava suspeita.
Na tv dos tempos heróicos o pretexto certo para discordar publicamente da postura adotada pelo Senador, foi encontrado no caso de Milo Radulovich, piloto da Força Aérea acusado de ser espião comunista. O jornalista abriu então um espaço no seu programa See It Now (Veja Agora) para indagar a veracidade da perseguição ao piloto e sofreu ele próprio acusações de ser um criptocomunista, ou seja, um vermelho no armário, isso porque, o senador agia como próprio inquisidor e acreditava piamente que poderia mandar e desmandar absolutamente em todos. O herói do filme por sua vez respondeu a altura todas às acusações levantadas e contribuiu para o fim do “poderio” de McCarthy.
O contexto do filme permite nos colocarmos na posição de Murrow. Os detalhes que o compõe faz com que o realismo das cenas pareçam mais com um documentário do que com a ficção. A começar pelo seu título, Good Night, and Good Luck que era a expressão utilizada por Murrow para se despedir dos espectadores. Podemos citar ainda a gravação realizada em preto-e-branco que remete ao passado, o estúdio esfumaçado pelas fumaças dos cigarros, os ternos e as gravatas do figurino dos anos 50 e especialmente as imagens reais do senador obtidas dos telejornais da época. É válido ressaltar que mesmo com a inserção do jazz em momentos alternados, as cenas continuavam com cortes rápidos, sobretudo, sua característica sóbria com linguagem seca, não deixando espaço para a vida íntima de seus atores, exceto o casal que não podiam assumir-se como tal por ser proibido o relacionamento entre pessoas do mesmo ambiente de trabalho, exposta superficialmente.
Teoricamente, a liberdade de expressão seria um direito compartilhado por todos, no entanto, a pressão do sistema controla e aliena para não perder as rédeas da situação. Embora com características extremamente norte-americanas o filme possui esses valores de interesses globais que auxiliam e dão alicerce para desdobramentos como por exemplo, o fato muitas vezes temos a sensação de estarmos presos, acorrentados em uma caverna, como no Mito da Caverna de Platão, vivendo de sombras. É como se algo maior nos prendesse a um determinado padrão e não tivesse escapatória, sendo vigiados o tempo todo como no clássico 1984 e suas versões até Matrix. A lavagem celebral é profunda o que dificulta desprender-se das correntes e alcançar a luz; mais complexo ainda alcançar um conhecimento diferenciado e ter a liberdade de transmiti-lo. É fato que a Indústria Cultural é uma das grandes responsáveis por essa disseminação, que nos faz fantoches de regras impostas sem prévia explicação e o que é pior não tendo aval para produzir livremente, questionar e discordar do poder vigente.
Infelizmente, há uma visível manipulação de informações, jogos de interesses que não prioriza em nada o nosso saber. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, diz em seu artigo 19: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios independentemente de fronteiras.” Exatamente assim deveria ser, porém devido a essas “partidas” com investimentos financeiros altos ficamos de mãos atadas. No caso de Murrow o embate foi ferrenho, ele desafiou ninguém menos que McCarthy e teve seu programa mudado para um horário ingrato. Ele foi corajoso, mas sofreu as conseqüências isso não aconteceria se a liberdade de expressão na democracia funcionasse como o artigo prevê. Estamos amarrados a interesses que vão além do nosso imaginário e vontade, por exemplo, quando somos submetidos a empresas jornalísticas que visam retorno financeiro. Não podemos esquecer dos meios alternativos encontrados em outros segmentos, todavia não sanam o problema pois são destinados a grupos e não para a grande massa.
A essência investigativa do jornalismo tem o poder de informar e formar, prestar um serviço social. Na história, vários são os casos jornalísticos que revolucionaram e mudaram o curso dos fatos, como exemplo podemos citar o caso de Watergate que com o Garganta Profunda levou Nixon presidente na época dos EUA a renuncia. Murrow sempre assumiu o papel de porta-voz de todos aqueles que lamentam a utilização da tv meramente como um veículo de desinformação e entretenimento banal ao invés de ser o instrumento da prestação de serviço por excelência, formação e busca da verdade.
A postura adotada por Murrow foi admirada por muitos dos seus colegas de profissão, justamente por não estar inserido na sintonia do modelo-padrão, ele acreditava no poder da mídia na educação e conscientização populacional. Tanto é verdade que em seu discurso diante da Associação de Diretores de Notícias de Rádio e TV dos EUA em 1958 afirmou: “àqueles que dizem que o povo não assistiria (a uma programação mais voltada à reflexão), que não estariam interessados, que são demasiadamente complacentes, indiferentes e isolados, eu posso somente responder: há, em minha opinião de repórter, consideráveis evidências contrárias a essa opinião. (...) Este instrumento pode ensinar, ele pode iluminar, sim, e pode até mesmo inspirar. Mas somente o poderá fazer à medida que estivermos determinados a usá-lo para estes fins. Caso contrário, ele nada mais é do que um emaranhado de fios e luzes em uma caixa. Há uma grande e talvez decisiva batalha a ser travada contra a ignorância, a intolerância e a indiferença. E nessa batalha, a televisão pode ser uma arma útil”.
A ética e a determinação de Murrow fazem falta nos dias atuais, retomando as próprias palavras do nosso “herói” o jornalismo contribui para a formação e deve conduzir o povo a reflexão de suas vidas e dos fatos que ocorrem em sua volta. A liberdade de expressão é um direito conquistado, entretanto pouco vivenciado. É muito mais cômodo aceitar a submissão do que se expor e agüentar as conseqüências. Cada vez menos, temos pessoas que estão dispostas a travar batalhas pela sua verdade. O filme Boa Noite e Boa Sorte mais do que nos levar para o passado nos proporciona uma discussão no presente.

31/05/2007

Deficiente Visual apaixonado por Computadores

Por Mayara Evangelista


Em uma garagem da periferia da Zona Leste de São Paulo Carlos Alberto de Souza, 55 anos, exercita sua paixão pelo mundo dos computadores. Com um sorriso no rosto e um olhar vago uma conversa descontraída inicia-se. O local é úmido, mal arejado e sem iluminação, a não ser pela luz natural que passa pelo portão meio aberto. Várias são as caixas de papelão com inúmeros CDs e antigos Lps de Beethoven, Elis Regina, Elba Ramalho. Além de seu velho rádio e seu computador existem apenas dois bancos e uma pequena mesa de madeira. Betão como é conhecido, tem 1,90 de altura, usa óculos de acrílico cinza chumbo que cobre a maior parte do seu rosto. Sentado, com as mãos apoiadas nos joelhos, ele fala com segurança sobre o universo da informática.
Sua vontade de aprender e sentir-se útil fez com que ele superasse barreiras. Alberto nasceu com catarata congênita e aos cinco anos foi submetido a uma cirurgia que contribuiu para melhora da sua visão. Os traços, os objetos e as cores do mundo ganharam maior nitidez, no entanto o problema não foi sanado.
O interesse pelos computadores foi despertado no seu primeiro emprego quando se mudou para Cuiabá, “O computador chegou na empresa e depois de tropeços consegui domá-lo”, ele afirma que foi errando e perdendo muitos arquivos que aprendeu. Embora tenha concluído somente o ensino médio e alguns cursos básicos de informática, Alberto manuseia os programas com destreza e eficiência. Ele conta que aperfeiçoou suas aptidões pela curiosidade e também ouvindo rádio. Inclusive hoje ele informa-se, sobretudo pelos noticiários matutinos da CBN e os programas segmentados da Rádio Eldorado como Plug 700, destinado a dúvidas, dicas de informática. Paulistano morou em Cuiabá durante dois anos, voltou para São Paulo devido ao problema de visual. Somente aqui ele teria melhores condições de tratamento.
Sua vida profissional foi bem diversificada, hoje aposentado Alberto relembra com satisfação as atividades que já exerceu como trabalhos em laboratórios, consultoria de eventos, eletricista e na década de 70, desempregado, quando retornou para São Paulo prestou um concurso publico para o Hospital do Servidor e efetivou-se como ascensorista. Em 1984 sofreu um acidente de carro, no qual resultou a sua aposentadoria por invalidez.
Gradativamente apesar de vários tratamentos, sua visão foi perdendo o brilho. Incapacitado de andar sozinho refugiou-se ainda mais no universo virtual. Por muito tempo fez programações e executou atividades utilizando uma lupa. Atualmente, com menos de cinco porcento de visão ele utiliza leitores de tela para deficientes visuais, Betão informa que esses programas (Narrador de Tela, Dosvos e Edivox) são facilmente baixados da Internet. Tateando o teclado ele mostra o funcionamento dos softwares. Ele mesmo fez a programação de todos os atalhos do teclado. Ctrl, Alt,Del uma voz codificada fala o comando.
Sobre seu convívio social, especialmente no que diz respeito a sua paixão ele diz, “As pessoas acham que eu falo por intuição e não porque eu sei, é como seu eu pendesse a credibilidade” Beto afirma já ter se acostumado com esse tipo de comentário “Falem mal, mas falem de mim”, risos. Por conta dos atropelos da vida nunca namorou, nem se casou, não constituiu família, hoje mora com a irmã, o cunhado e dois sobrinhos.
Para o futuro ele torce que a ciência desenvolva algum tratamento para reconstituir sua visão, tanto é que ele se colocou a disposição para “protocolo de interesse científico” Se conseguir atingir o sonho de ser curado e voltar a enxergar mesmo que seja menos de 50%, ele diz que vai fazer cursos de hardware, e avançados de softwares. Entretanto, com tantos anos de convivência com o problema visual diz “Eu não preciso da vista, porque eu sei como faz, eu conheço o caminho”. Alberto é exemplo vivo de que uma deficiência não é obstáculo para realizações.

24/05/2007

Zona Leste tem o primeiro núcleo descentralizado da Apae

Por Andrelissa Ruiz

O primeiro núcleo descentralizado da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo é o núcleo Avançado Leste de Estimulação e Habilitação, localizado na zona leste, no Conjunto Habitacional José Bonifácio, em Itaquera. O núcleo atende crianças de 0 a 7 anos de idade com deficiência mental dos bairros próximos, como Guaianazes, São Mateus, São Miguel , Ermelino Matarazzo e Cidade Tiradentes também.
A proposta de um núcleo na zona leste surgiu a partir de um levantamento da Apae central que constatou que a Zona Leste e Sul são as regiões de maior demanda de crianças portadoras de Síndrome de Down. Assim, o núcleo leste começou com quarenta crianças e com quase dois anos de existência, desde agosto de 2005, hoje ele atende 225 crianças, mas a proposta é de atender 300.
O tratamento das crianças é de habilitação, estimulação e inclusão. Além dos exercícios para seu desenvolvimento físico e motor realizado por fonoaudióloga, fisioteraupeta e terapia ocupacional, elas ainda recebem acompanhamento escolar de uma psicóloga, que envia e recebe relatórios da escola sobre a criança. O trabalho da Apae está centrado na estimulação da autonomia da criança para facilitar sua inclusão social.
Os pais acompanham os filhos em todo o tratamento de uma hora e meia dentro da Apae. Além disso, a família da criança é acompanhada mensalmente por reuniões realizadas com psicóloga e assistente social.
O núcleo Avançado Leste de Estimulação e Habilitação trouxe facilidades para as mães dos portadores de síndrome de down da região da zona leste, pois antes todas precisavam ir até a Apae central, um trajeto longo que exigia força de vontade e disponibilização de tempo devido ao tratamento ser a longo prazo. Com o núcleo leste muitas famílias foram beneficiadas e podem tratar seus filhos, além de ter a vantagem de colocá-los em uma escola regular perto de casa e ter o acompanhamento necessário para o desenvolvimento da criança.
Quanto antes a síndrome de down for diagnosticada e a criança receber ajuda, mais chances ela tem de amenizar sua deficiência mental e, dependendo do grau de deficiência, chegar a autonomia nas ações contidianas.
O núcleo da Apae localizado no Conjunto Habitacional José Bonifácio atende apenas crianças, mas a Apae central tem trabalhos voltados para todas as idades, inclusive a faixa adulta.


Fique por dentro

“Prevenir a deficiência, facilita o bem-estar e a inclusão social da pessoacom deficiência intelectual.”
Leia mais...
www.apaesp.org.br

21/05/2007

‘Raça’ humana como dom de Deus

Por Mayara Evangelista


Crenças, esperança e fé. Estes são os sentimentos abrigados no Quilombo dos tempos modernos. Pelas ruas da Cidade Tiradentes encontra-se um mundo diferente do que é pintado nas reportagens dos telejornais. Ao contrário do que muitos pensam as pessoas podem transitar tranqüilamente pelo bairro. Uma das coisas que mais chamam atenção é a quantidade de igrejas do local. A cada esquina existe uma, ou melhor, duas de uma só vez. Na maioria das vezes elas são vizinhas e dividem o mesmo muro.
A religiosidade da região não pára nas construções. Existe um respeito entre os seguimentos religiosos, principalmente quando se trata da questão: Consciência Negra. Em 2006, participei de dois importantes eventos para a valorização das raízes afro-descendentes. Um foi o Terceiro Encontro Inter-religioso ocorrido na Casa da Fazenda que reuniu representantes das religiões locais como o candomblé, a umbanda, o budismo, o catolicismo, o protestantismo e o kardecismo. E o outro, a missa afro na Paróquia Cristo Ressuscitado que contou com a participação de crianças e adultos trajados a caráter. Roupas estampadas, comidas típicas, alegria! Para mim foi uma surpresa participar de um encontro respeitoso entre pessoas com crenças tão distintas, além da missa, claro, que foi sem dúvida uma das mais animadas e especiais que já presenciei. O ritmo afro é empolgante, não tem como ficar parado.
Unidos por um objetivo maior: o amor como forma de propagar a paz e a luta pela igualdade. Essas foram as palavras de todos os religiosos participantes. Em ambos encontros, a negritude foi exaltada, e acima disso, foi salientado que a ‘raça’ humana é um dom de Deus e que antes de qualquer coisa somos todos filhos dele independente de como o chamamos ou da tonalidade de nossas peles. Digo ‘raça’ porque ainda existem aqueles que insistem em utilizar esse termo como forma de preconceito.
Uma coisa é certa, a fé e a esperança em um Brasil mais consciente e igualitário estavam estampadas no brilho do olhar de todos os que participaram desses eventos, inclusive no meu. O trabalho de formiguinha surte efeito a partir do momento que nós mudamos nós mesmos e os que estão dentro de nossas casas.

17/05/2007

Ironia do Destino

Por Mayara Evangelista


São 7h30 da manhã. Nosso ponto de encontro é a estação de trem de Itaquera, zona leste de São Paulo. O caminho é longo, temos como destino Estação Jaguaré, zona oeste, no Shopping Villa Lobos. As expectativas são grandes, vamos assistir à palestra do famoso jornalista Gilberto Gimenstein sobre responsabilidade social no auditório da livraria Saraiva. No entanto, o que não podíamos prever era o nosso trajeto e o que, ou melhor, quem iríamos encontrar.
Dezenas pessoas na espera do trem. Vagões lotados. Um aglomerado de pessoas de todos os tipos, parece que todo mundo resolveu sair de casa. Depois das baldeações necessárias de linha a linha da CPTM estamos agora em direção a Presidente Altino. O trem é daqueles antigos como todos da frota, mas aparentemente está conservado. As portas se abriram vimos três lugares vazios, enfim sentaríamos. Os bancos estão dispostos de modo que ficamos literalmente na frente do outro. Ao meu lado um senhor simpático apresentou-se com um ar solicito e muito gentil. Uma pergunta bastou para iniciarmos uma conversa descontraída como se fossemos velhos amigos.
Francisco Oliveira Neto, 28 anos, estava a caminho do trabalho. Meio a sorrisos ele fala com emoção de sua terra natal, Teresina no Piauí. Há oito anos em São Paulo ele afirma que não se arrepende da mudança. Amante do teatro veio para esta capital em busca de realizar o sonho de ser um ator reconhecido. Aqui, já atuou em Teatro de Rua e embora esteja afastado ele conta com satisfação, do que ele chama de “dom”.
Neto formou junto com amigos, que fez em São Paulo, o Grupo de Teatro Pé na Jaca, segundo ele esse nome foi escolhido porque eles “chegavam e faziam, improvisavam se preciso”. Com histórias engraçadas sobre essa experiência ele enfatizou como é difícil fazer Teatro de Rua, “No Teatro de Rua a gente tem que chamar atenção, não é como o teatro ‘normal’ que tem palco que as pessoas vão para te ver”. Certa vez, nos conta nosso ator, teve que assumir na hora da apresentação do espetáculo mais dois papéis além do seu, porque os colegas ficaram com vergonha do público e desistiram.
“Olha o bombom Choquito. Um é cinqüenta, três é um real”, abruptamente fomos interrompidos por um vendedor ambulante. “Calma, calma. Não é briga não” disse ele imaginando que estivéssemos assustados com os gritos.
Atualmente Neto é vigia de uma loja, como trabalha todos os dias da semana teve que deixar sua paixão “por agora” como afirma, com esperança de retornar a atuar com os amigos, que desanimados com a saída dele foram um a um desistindo também. “Eles disseram que sem mim não é a mesma coisa e quando eu voltar eles voltam” Vários foram os ensaios que participou, uma vez por pouco não conquistou o papel em uma peça, ele diz que a diretora discriminou-o por ser nordestino. “Ela disse que eu tinha ido bem, feito tudo certinho, mas que era para tentar outra vez”. Pela janela observamos aquela paisagem até então desconhecida para nós, vivenciamos a cada palavra as ilusões de uma vida melhor, talvez um conto de fadas como “artista de televisão”. “Estação Presidente Altino” anuncia o maquinista, nos preparamos para descer. Na despedida o nosso novo amigo ficou impaciente, “Espera, espera, vou dar meu cartão para vocês”. Não esperávamos aquela atitude. Ele revirou a mochila que trazia no colo até que encontrou os cartões, estendeu a mão e nos deu. O apito final soou, a porta fechou tivemos que descer na próxima estação, Osasco.
Acenando pela janela víamos Neto com sorriso tímido e fraternal, nossa sensação era ver partir um velho amigo. O cartão era simples, um pedaço de papel sulfite envelhecido, que dizia: Eletricista FRANCISCO NETO Serviço e Manutenção Elétrica. Reforma e Instalação nova em geral”. Que ironia, um ator/vigia e ainda eletricista. Ele é um típico brasileiro, se vira como pode e com seu “jeitinho” sobrevive meio a cidade cinzenta.
Continuamos nosso trajeto com a imagem dele na mente e o inicio de sua história anotada em um bloquinho de papel.

14/05/2007

Na esquina a vida se cruza com a felicidade

Por Andrelissa Ruiz

Lembro-me bem de como eram gostosas as tardes de sol e as noites calorosas de verão tomando suco congelado em saquinho (“juju”, geladinho, cada um conhece de uma forma). Lembro-me das fogueiras de inverno, do tempo imprevisível do outono que me fazia sempre andar com agasalho amarrado na cintura (recomendações da minha mãe) e do colorido da primavera que deixava tudo florido. Tudo isso são lembranças de momentos da minha rua, amigos na calçada, bolas para lá e para cá, tombos de patins! Fases da minha infância.
A rua pode ser um simples corredor no qual carros passam apressados aos seus destinos, mas pode ser palco de show, do show da vida, que não reprisa cenas e demora a mudar de cenário.
Quando senti que estava crescendo e que já podia ir sozinha a alguns lugares, foi a rua que me deu a sensação da liberdade, abri o portão de casa e ali estavam: só eu e ela. Livre para caminhar.
Bandeirinhas e tintas verdes e amarelas para tudo quanto é lado, era Copa do Mundo, a rua me trouxe mais um sentimento, o patriotismo.
Sentada na calçada numa tarde de domingo, eu esperava alguém. Olhei para o começo da rua...senti paixão.
Medo da rua eu senti quando tirei minha carta, mas mais uma vez a rua me mostrou que seu percurso, o meu destino, sou eu quem escolhe.
Essas são algumas sensações que a rua me passa.
Na maioria dos momentos da minha vida, a rua me ensinou algumas lições e sentimentos que do portão para dentro de casa, em meu castelo, super protegida, eu nunca iria sentir. Geralmente, foram bons sentimentos, mas às vezes a vida faz um caminho pelo qual não se encontra a felicidade, percebi isso. Vi, um dia pela rua, minha avó sendo levada de ambulância e a certeza que ali naquela rua eu nunca mais a veria. Vi alguns amores indo embora e alguns amigos desaparecendo.
Mas, nem por isso deixei de ver a rua como o tapete da minha ansiedade e a esquina como minha referência de esperança. Quem nunca ficou horas a olhar na esquina esperando alguém, alguma coisa ou alguma noticia?
A questão da rua é contraditória, mesmo a conhecendo há tanto tempo, sempre esperamos nela o desconhecido. Não sabemos nunca quem vai chegar pela nossa rua ou o que vai acontecer. Mas, esperamos que, independente do que seja, quando olharmos para esquina a felicidade esteja lá.
Só as ruas nos levam ao mundo, entre cruzamentos, faróis e lombadas, sabemos aonde vamos, o momento de parar e o momento de ir mais devagar. A vida é como uma longa avenida.
Minha rua é asfaltada o que me passa certa segurança, pois sei que pedras não existem no caminho que faço por ela. Minha rua tem árvores, o que me passa certo conforto, pois sei que quando precisar vou ter sombra para descansar. Mas, minha rua se cruza com três esquinas de uma vez, o que me gera certa dúvida, pois, da mesma forma que vi minha infância passar pela minha rua e não mais voltar, se eu escolher a esquina errada posso me desencontrar com a felicidade e não achar um retorno. É na esquina que a vida se cruza com a felicidade, pois é na esquina que outras vidas se cruzam. Em qual esquina encontrarei a felicidade? A minha rua vai me guiar...

10/05/2007

Morar na rua é uma opção de vida ou conseqüência das desigualdades sociais?

Por Andrelissa Ruiz

Metrópole, desenvolvimento, pessoas elegantes e bonitas, será que é só isso que encontramos em São Paulo? Nas periferias desta imensa cidade encontramos o contraponto: pessoas passando fome, sem casa, sem emprego. A vida de uma cidade grande é cheia de desigualdades, é uma mistura de poder econômico com pobreza. A sociedade da cidade da garoa é assim: de um lado a chuva é fina, do outro é tempestade. Mas, de quem é a verdadeira culpa de tantos problemas sociais? É fácil culpar os governos, dizer que as pessoas procuram empregos e não encontram. Será que todos procuram? Será que levar uma vida sem responsabilidades não é mais fácil?
Há pessoas que estão sem casa, sem emprego, por causa dessa grande desigualdade social entre classes, na qual a ambição é o motivo da vida, mas também há as pessoas acomodadas, que tentam um caminho mais fácil, sem objetivos na vida. Augusto César Lawfor Squifano, 37 anos, morador de rua do bairro de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, nos conta um pouco da sua vida nas ruas, alimentação, higiene, drogas, bebidas e, principalmente, os meios para se auto-sustentar nessa vida instável e sozinha. Acompanhe o depoimento dele, e conheça a versão de quem vive a margem da sociedade:


Cidadania em Pauta: Você sempre foi morador de rua? Você estudou?
Augusto:
Eu tive uma vida normal, mãe, tudo. Graças a Deus! Eu estudei até a quarta série...

Cidadania em Pauta: E depois disso, por que parou de estudar?
Augusto:
Eu parei porque eu tinha que trabalhar, ajudar minha mãe. Eu sai da escola por causa de muita zoeira também, más companhias. Isso aí me levou de uma maneira totalmente diferente do que eu pensava e, sei lá, de repente eu cai nessas de ficar aí, de ficar na rua. A família me acolhe, mas eu volto para rua, não tem jeito.

Cidadania em Pauta: E você já trabalhou?
Augusto:
Já, eu trabalhava em lava rápido.

Cidadania em Pauta: Com quantos anos você começou a trabalhar?
Augusto:
Comecei a trabalhar com 15 anos.

Cidadania em Pauta: Aí você ficou dos 15 até quantos anos?
Augusto:
Eu fiquei dos 15 anos até os 17, aí com 17 eu sai, arrumei outro emprego lá no Tatuapé, aí como ele tava falindo eu pedi a conta e fui embora para a rua. Aí renovaram o lava rápido de novo, tão me chamando pra lá, mas eu não tenho condição não, não tenho capacidade mais pra ir pra lá...

Cidadania em Pauta: Por quê?
Augusto:
Porque, sei lá, eu acostumei a trabalhar com negócio de reciclagem também e é por aí né, ficar no meio da bagunça com os caras bebendo, zoando.É assim.

Cidadania em Pauta: Quanto tempo você costuma ficar catando papel?
Augusto:
Bom, se eu começo umas sete e meia, oito horas da manhã, eu vou até meio dia, uma hora da tarde no máximo.

Cidadania em Pauta: Você pode me dizer, em média, quanto você ganha com a reciclagem?
Augusto:
Oh, quando ta bom eu tiro no máximo R$60, R$70, agora, bem se dizer, não to tirando nem R$10 por dia. Caiu muito, é muita concorrência na área. Essa concorrência desvalorizou o preço e aumentaram as pessoas desempregadas, aí nessa dái teve uma recaída.

Cidadania em Pauta: E esse dinheiro o que você faz com ele?
Augusto:
Ah, eu compro alguma coisinha pra mim usar, uma meia, vou dizer discretamente (abaixou a cabeça) uma cueca, uma camisa, mas ultimamente não ta dando nem pra eu fazer isso mais.

Cidadania em Pauta: E depois, o restante do dia?
Augusto:
Ah, depois é só zoeira! Não faço mais nada, só fico na bagunça.

Cidadania em Pauta: O que seria essa bagunça?
Augusto:
Ah, bagunça assim que eu digo é ficar com os colegas tomando cachaça, porque eu não vou mentir, tomando cachaça, zoando, conversando. Às vezes quando eu chapo demais eu deito e durmo, não prejudico ninguém, não atrapalho ninguém. Essa é a bagunça minha


Cidadania em Pauta: E você dorme aonde?
Augusto:
No sofá.

Cidadania em Pauta: Aonde?
Augusto:
No terminal. (se refere ao terminal de São Miguel)

Cidadania em Pauta: É ali a sua casa?
Augusto:
Casa não. É passatempo. Eu passo só algum tempo lá. Agora de sábado e domingo eu tenho minhas roupas limpinhas, vou e tomo um banho ali na dona Amélia, me troco, arrumo um dinheiro e vou para a casa da minha irmã, aí passo o final de semana lá, aí na segunda feira de manhã eu “rua de novo”!

Cidadania em Pauta: E sua irmã te trata bem?
Augusto:
Graças a deus!

Cidadania em Pauta: Ela não ficou com nenhum preconceito?
Augusto:
Não. O único preconceito que ela tem é de gente me judiar na rua, mas o resto nada mais.

Cidadania em Pauta: Por você está na rua você acaba se envolvendo com muitas coisas...
Augusto:
Mas eu sou mais cabeça fresca, eu sou sossegado, eu tenho meus defeitos, mas...

Cidadania em Pauta: Você já se envolveu com drogas?
Augusto:
Já. Não vou mentir. É difícil, é raridade eu usar, mas quando eu começo a pensar em uma coisa que nem na minha esposa que ta hospital, aí eu começo a pensar nela, aí já vem outros negócios na cabeça, aí eu uso.

Cidadania em Pauta: Com quantos anos você começou?
Augusto:
Comecei com 19.

Cidadania em Pauta: Então foi assim que você deixou de trabalhar no lava rápido.
Augusto:
Foi.

Cidadania em Pauta: Você tem uma esposa?
Augusto:
Tenho, visito ela e tudo, só que eu não me conformo dela estar deitada em uma cama.

Cidadania em Pauta: O que aconteceu com ela?
Augusto:
As pernas dela travou, travou tudo.

Cidadania em Pauta: E você vai visitá-la sempre?
Augusto:
Não vou dizer que é sempre, mas quando eu to com momento de silêncio na cabeça eu vou lá e visito ela, fico lá, passo a noite, nós brinca, nós ri...

Cidadania em Pauta: E com o dinheiro da reciclagem você compra coisas só pra você ajuda sua esposa por exemplo?
Augusto:
Às vezes eu dava alguma coisa pra ela, mas as coisas estão ruins, ta péssima, às vezes daqui até Praça do Forró você não acha uma folha de papel.

Cidadania em Pauta: E as suas condições de higiene, para tomar banho, por exemplo, aonde você toma?
Augusto:
Tem a dona Amélia que mora aqui perto, tem o posto de gasolina que os meninos lá me conhecem, aí eu vou tomo banho, troco de roupa sossegado.

Cidadania em Pauta: Você tem muita roupa?
Augusto:
Não, eu não posso levar muita roupa na rua. Tenho muita roupa assim, tenho algumas roupas na casa da minha irmã, se eu trazer tudo pra cá eu vou montar um guarda-roupa lá na rua e aí alguém vai levar tudo.

Cidadania em Pauta: Como é sua alimentação?
Augusto:
Oh, nós faz assim, tipo uma vaquinha. Um compra uma coisa o outro compra outra, ai nós vai aqui buscar no Mercadão ( Mercado Municipal de São Miguel Paulista), vai ali pede um arroz, ninguém vai negar, daí outro traz o macarrão, um pouco de feijão, outro traz um pouco de café, porque eu não fico sem café de manhã, uns os pãezinhos nem que seja pra assar de uma noite pra outra, e a gente vai sobrevivendo quando é a noite. Aí, amanhã tem um marmitex dos meninos da igreja, da Batista, Pentecostal, Deus é Amor. Os meninos também trazem café no dia de sábado, da Pentecostal, tem uns da Congregação e por aí nós vai revezando. E assim nós vamos sobrevivendo aos trancos e barrancos, uma hora Deus vai iluminar todos nós!

Cidadania em Pauta: Tem dia que vocês não tem nada para comer?
Augusto:
É difícil não ter, mas tem dia que a gente passa apertado, é de domingo, mas mesmo assim a gente faz uma carrera vai na feira pega uns peixes a gente conhece uns meninos lá da feira e pega uns filé de peixe, outro arranja o arroz, outro arruma isso, mas fome a gente não passa não, graças a Deus.

Cidadania em Pauta: E no frio como vocês fazem para dormir?
Augusto:
A gente dorme lá em cima na cobertura do Terminal de ônibus, junta uma coberta na outra e dorme todo enrolado. A maioria dos meninos lá tem coberta eu também tenho. Eu tenho duas, outro tem duas, uns tem três, e assim por diante. A gente vai revezando para não passar mais dificuldade do que as que já tem.


Cidadania em Pauta: Você já pensou em de repente trabalhar mais tempo, em vez de trabalhar só um período e depois ficar na bagunça?
Augusto:
Oh, realmente eu pretendia, mas do jeito que tá a infração, aí não tem condições mais.

Cidadania em Pauta: Você acha que não compensa?
Augusto:
Pra mim não ta compensando nada!

Cidadania em Pauta: Você tem alguns colegas que recolhem papel também?
Augusto:
Sim, tenho vários.

Cidadania em Pauta: E como é a vida de vocês, um ajuda o outro?
Augusto:
Vamos dizer assim, oh, a maioria tem um barraquinho aqui, outro lá e assim por diante, mas a maioria mesmo, tá tudo na rua.

Cidadania em Pauta: Você tem amigos?
Augusto:
Oh, não vou mentir não, amigo eu tenho sim, só aquele lá em cima, porque na face da terra não.

Cidadania em Pauta: E você não pensa em arranjar outro trabalho?
Augusto:
Pensar penso, mas ta difícil. Sem documento, sem nada, perdi tudo, não posso tirar outro.

Cidadania em Pauta: Não pode? Por quê?
Augusto:
Porque eu (silencio) aprontei uma arte aí, fiz um negócio errado. Aí eu fiquei preso, já não posso, tem que passar mais uns dois anos e pouco pra mim tirar os documentos de volta.

Cidadania em Pauta: Quanto tempo você ficou preso?
Augusto:
Na primeira vez eu fiquei 3 meses, na segunda eu fiquei 4 à 5 meses, essa última agora eu sai com 2 anos e um mês.

Cidadania em Pauta: E a vida na cadeia como é? É pior do que ficar na rua?
Augusto:
Nossa é difícil. Eu sou mais ficar na rua do que lá dentro, por mais dificuldade que a gente passa por onde a gente correr sempre arranja alguma coisinha pra gente fazer, um entulho, um a laje pra encher, uma fossa pra limpar, uma mudança, lixo pra tirar, por que olha vou te falar, ficar lá dentro não é fácil não, não é qualquer um que agüenta não, já vi colega meu se matar lá dentro por cauda de burrice.

Cidadania em Pauta: E o que você fez para ser preso?
Augusto:
Assalto. Fui no embalo dos outros. Mas, eu me arrependi né.

Cidadania em Pauta: Você acha que na sua vida as pessoas influenciaram muito você pelo lado ruim?
Augusto:
Sim


Cidadania em Pauta: Por curiosidade, você sabe a origem do seu sobrenome? Seus pais eram daqui do Brasil mesmo?
Augusto:
Meu pai não.

Cidadania em Pauta: De onde que seu pai é?
Augusto:
Meu pai é francês. Meu pai era da França, aí ele se amigou com a minha mãe passou dois em casa e depois que eu nasci ele oh , vazou!

Cidadania em Pauta: E sua mãe?
Augusto:
Minha mãe está enterrada aqui no Cemitério da Saudade.

Cidadania em Pauta: Você só tem uma irmã ou tem mais irmãos?
Augusto:
Tem a Ivani, tem a Beth e tem a Conceição. A Conceição mora no Parque Paulistano, Ivani no Jardim Romano e a Beth, que gosta de mim, que é uma maravilha, ta aqui no Jardim Camargo Novo.

Cidadania em Pauta: E as suas outras irmãs não te ajudam?
Augusto:
Eu não conheço nenhuma das minhas outras irmãs. Irmão eu tenho mais não conheço nenhum deles. Só a Beth que me dá apoio.

Cidadania em Pauta: Mas por que você não conhece eles?
Augusto:
Porque eu nunca vi. Eu sou o caçula.

Cidadania em Pauta: E como é q você sabe que eles moram aqui, a Beth q te falou?
Augusto:
A Beth eu vivi com ela antes da minha mãe falecer, porque antes eu trabalhava em Biritiba Mirim, numa chácara. Eu tomava conta de gado, limpava currau, tratava de passarinho.

Cidadania em Pauta: E por que saiu?
Augusto:
Porque o dono vendeu a casa, senão eu tava lá até agora. Tinha gado, cavalo, bicicleta, passarinho, um casal de arara que era a coisa mais linda. Eu não vou mentir, eu tenho saudade de voltar pra lá, porque eu aqui não to valendo mais nada.


Cidadania em Pauta: O que você espera da sua vida hoje?
Augusto:
Tava esperando pelo menos uma coisa, mas é uma coisa que eu nunca mais vou ter de volta. Se a minha mãe estivesse viva eu não estava aqui. Minha mãe me apoiava em tudo, errava e ela sempre tava me apoiando. Graças a Deus, aonde ela ia eu tinha que ir atrás, não deixava minha mãe sozinha nenhum segundo.

Cidadania em Pauta: Você tem objetivos na vida?
Augusto:
Não senhora.

Cidadania em Pauta: Você já se acostumou a vida que leva?
Augusto:
Bom, não é caso de se acostumar, é caso que tem certas coisas que a gente não tolera muito, para mim tolerar alguma coisa, alguma palavra errada já me ofende. Então, sei lá, tem hora que eu prefiro mudar de vida sim, assim um lado aqui ou lá, mas vou falar pra você não é fácil não. Só lamento, to sem cigarro, to sem dinheiro, sem nada , mas eu ando por ai pra ver se consigo alguma coisa. Quem sabe!